Por MAURÍCIO CARNEIRO
No universo da cachaça de alambique, além das tradicionais, existem variedades que atendem a públicos específicos, tais como as cachaças com certificação kosher (produzida de acordo com as leis alimentares judaicas); cachaças biodinâmicas (feitas sob processos que mantêm o solo equilibrado, sem causar impactos ou prejuízos derivados de produtos químicos) e as cachaças orgânicas. É sobre a cachaça orgânica que falaremos hoje.
O que é uma cachaça orgânica
Do açúcar ao café, do algodão à camiseta, tudo o que advém da produção agrícola pode ser certificado como produto orgânico, recebendo selos que atestam internacionalmente essa qualidade. Com a cachaça não é diferente.
O processo de produção da cachaça de alambique já é sustentável em sua essência. A cabeça, a calda, os bagaços ou o vinhoto, quase tudo se reaproveita e a geração de resíduos é mínima. Isso faz com que a certificação de produtos orgânicos para a cachaça seja facilitada, em relação a outros produtos.
A cachaça orgânica, basicamente, é aquela que não utiliza agrotóxicos, adubos químicos, herbicidas, pesticidas ou qualquer substância sintética na produção da cana que dará origem à bebida. A produção desse tipo de cachaça é ambientalmente responsável e ecologicamente sustentável. Assim, o esterco para as plantações; o solo; o preparo da terra; o controle de pragas; a água; o processo de fermentação e todas as práticas agrícolas e produtivas têm que estar, comprovadamente, isentas de químicos artificiais.
A legislação
O caráter artesanal da produção da cachaça se adéqua perfeitamente às regras da agricultura orgânica, com pequenas adaptações. Porém, engana-se quem pensa que obter um selo de certificação é simples. Não basta apenas banir fertilizantes químicos e agrotóxicos: é necessário que toda a operação agrícola, industrial e comercial obedeça a rígidos critérios e padrões de sustentabilidade.
Não existe uma norma específica à cachaça orgânica. A legislação é totalmente abrangente e se aplica a toda e qualquer produção orgânica. Esta é regulamentada pela Lei 10.831 de 23 de dezembro de 2003, que inclui a produção, o armazenamento, a rotulagem, o transporte, a certificação, a comercialização e a fiscalização dos produtos.
Obtenção do selo orgânico
O processo se inicia com a definição da empresa que fará a certificação e atestará que a produção está adequada à legislação orgânica do Brasil (veja aqui as certificadoras credenciadas). Após isso é solicitado o preenchimento do Plano de Manejo Orgânico (PMO). No PMO é feito um diagnóstico inicial e são determinadas responsabilidades, previsão de recursos necessários, técnica e treinamento de colaboradores, práticas para manter e/ou incrementar a biodiversidade, entre outros. Esse documento será a base para a futura auditoria de certificação.
A adequação das práticas da propriedade às exigências do PMO pode ser orientada por uma consultoria externa. Após a certeza de que todos os requisitos estão atendidos, a certificadora é acionada para realizar a auditoria que atestará que a produção é orgânica, com a emissão do selo de Produto Orgânico. Caso o produtor não atenda às especificações exigidas, ele entrará na chamada Fase de Transição Agroecológica (da agricultura convencional para a orgânica). Essa fase não tem prazo definido e varia de acordo com a complexidade dos problemas encontrados (pode levar três meses, um ano, seis anos, etc.).
Família orgânica
O mercado nos oferece bons exemplos de cachaças orgânicas, como a Cachaça Sanhaçu, de Chã Grande em Pernambuco; primeira cachaça com certificação orgânica no estado. Segundo o administrador do Engenho Sanhaçu, Oto Barreto Silva, a propriedade já produzia hortaliças orgânicas desde 2007 e foi rápida a adequação à produção de cachaça.
Certificada em 2011, a Cachaça Sanhaçu foi uma das pioneiras no segmento a receber o título de Produto Orgânico. “O selo de orgânico nos proporcionou um diferencial gigantesco, pois eram poucas as cachaças com essa distinção, isso, num primeiro momento, foi determinante para o crescimento da nossa marca no mercado”, afirma Oto Barreto.
A filosofia orgânica trouxe outros benefícios para o negócio, como a facilitação da certificação de carbono compensado, que reconhece o plantio de árvores para neutralizar as próprias emissões. Isso foi determinante para fechar as primeiras exportações. Hoje Bélgica, Luxemburgo e Suíça já conhecem as delícias fabricadas no Engenho Sanhaçu.
Oto Barreto também revela que seu principal diferencial competitivo é, justamente, trabalhar para o consumo responsável. Essa diretriz ultrapassa as rotinas de preparo da cachaça e faz parte do dia-a-dia da sua família, que vive no engenho e consome, prioritariamente, produtos orgânicos. ”O grande orgulho da Sanhaçu não é ser uma cachaça orgânica e sim o fruto da união da família”, complementa.
Exemplo paraibano
Nessa linha do carbono compensado, temos outro bom exemplo, que vem da Cachaça Serra Limpa, de Duas Estradas, na Paraíba. Além da certificação de produção orgânica, a Serra Limpa possui projetos de reflorestamento por meio de uma reserva particular e chega ao extremo de utilizar somente carros de boi para o transporte da cana da lavoura até o alambique.
O produtor da Cachaça Serra Limpa, Antônio Inácio, revela que os cuidados com a fertilidade do solo, o controle biológico de pragas e o transporte em carro de boi da cana colhida manualmente contribuem para a qualidade do produto final bem como os processos de fermentação natural e destilação em alambiques de cobre.
Além da Serra Limpa, a Paraíba possui outra cachaça orgânica: a Pai Vovô. Produzida na cidade de São Domingos, no Alto Sertão paraibano, essa bebida alçou a produção orgânica a um altíssimo nível de qualidade. Resultado: um produto absolutamente diferenciado que fez da Pai Vovô uma das cachaças mais premiadas no Brasil em 2019.
Boas práticas de fabricação
Para o empresário Sandro Coutinho, proprietário da Vale do Sol Orgânicos, de Siqueira Campos-PR, o processo de certificação também não exigiu grandes esforços. Desde 2009, a empresa já estava certificada na produção orgânica de rapadura e melado, por isso foi fácil, para ele, adequar a Cachaça Vale do Sol ao processo orgânico; o selo foi obtido em 2015.
“A certificação na plantação não foi nada complicada, mas tivemos que nos adequar às boas práticas de fabricação e foram auditados 182 pontos. Os controles foram bem abrangentes e tiveram que ser implementados em todos os processos: moagem, decantação, filtragem, padronização, fermentação, destilação, armazenamento, engarrafamento e depósito”, complementa Sandro Coutinho.
O empresário ainda revela que ser orgânico é uma filosofia de vida, por isso passa a ser algo natural no comportamento de todos. Ações como a vistoria de casas do sítio, controle de circulação de animais pela propriedade e isolamento de áreas e de vizinhos não orgânicos, tornaram-se rotinas que se incorporaram ao cotidiano da propriedade.
Valorização do produto
Hoje, o apreciador das cachaças premium não se atêm ao simples degustar do líquido. Observa-se que esse consumo caminha para a conjugação entre elementos de diferentes setores econômicos: a experiência sensorial proporcionada nas degustações, aliada à gastronomia local (possibilitando excelentes oportunidades de harmonização com a cozinha regional) e enriquecida pelo turismo nas localidades de produção das bebidas, tudo isso permeado pelo respeito à responsabilidade social e às boas práticas ambientais.
O mercado de cachaças orgânicas está em franca expansão no Brasil. Segundo Oto Barreto, no entanto, esse não é mais um diferencial tão relevante, haja vista que já existem várias dezenas de cachaças orgânicas no mercado. “Precisamos agregar valor de outras formas e trabalhar com a conscientização do publico consumidor, para aumentarmos nossa base de clientes”, conclui.
Sandro Coutinho, por sua vez, nos revela que os preços da sua cachaça orgânica já são bem parecidos com o da convencional, o que melhora a capacidade competitiva. “Na Expocachaça 2019, em Belo Horizonte, dos 265 expositores apenas cinco eram orgânicos. Meu trabalho foi o de convencimento e conscientização do público sobre o diferencial da nossa cachaça. Eu me tornei um ‘catequista’ do produto orgânico”, arremata com humor.