O ano de 1520 é um dos três possíveis períodos que muitos “especialistas” mencionam como o ano do nascimento da cachaça. Assim sendo, neste 2020 o nosso destilado nacional completa 500 anos. Mas, será mesmo que a cachaça tem cinco séculos?
O “nascimento” da cachaça
Antes de tudo, que fique claro que não sou um historiador. Tampouco pretendo reescrever a história. Sou um mero pesquisador diletante, que busca ir além das afirmações anônimas que permeiam o passado e o presente da nossa cachaça.
Quando se pesquisa sobre o nascimento da cachaça, uma das afirmações mais divulgadas pela internet, e até em textos que se propõem sérios, como livros e trabalhos acadêmicos, é a seguinte:
A cachaça nasceu no litoral brasileiro, com a criação dos primeiros engenhos de açúcar, entre os anos de 1516 e 1532. Ela pode ter surgido nas seguintes localidades: Ilha de Itamaracá/PE em 1516; Porto Seguro, Litoral da Bahia, no ano de 1520 ou em 1532, com a fundação do engenho São Jorge dos Erasmos, na Capitania de São Vicente, atual São Paulo. Assim, a cachaça tem cinco séculos e é o mais antigo destilado das Américas.
Pronto! Então temos a informação eficaz, direta e precisa (?).
Uma rápida pincelada de historicidade e está decretada a verdade. Por isso, agora podemos dizer ao mundo o quão antiga é a nossa bebida nacional. A cachaça nasceu junto com o Brasil!
É quase como se os colonizadores portugueses desembarcassem das caravelas já com os alambiques às costas, num afã coletivo de produção imediata de cachaça.
Mas… e as evidências? Onde, quando, como, quem escreveu ou registrou isso?
Ao buscarmos as fontes dos registros históricos que comprovem tal nascimento, o que se encontra é um grande vazio.
Afirmações sem embasamento histórico
Nada! Absolutamente nada, nenhum documento histórico corrobora as afirmações de produção de destilados nos Quinhentos coloniais. Alguns até, baseados em meras suposições, se apegam à famosa frase do folclorista potiguar Câmara Cascudo: “onde mói um engenho, destila um alambique”.
Quem se der ao trabalho de ler o “Prelúdio da Cachaça”, obra que estampa a declaração de Câmara Cascudo, verá que ele se refere, não aos primeiros engenhos instalados em terras de Vera Cruz, mas à fase de transição entre os ciclos do açúcar e do ouro. Nesse período os engenhos deixam, como atividade principal, a declinante produção açucareira. Passam a se dedicar à nascente e vigorosa fabricação das aguardentes da terra. Isso no início Ciclo do Ouro, no século XVII, para abastecimento de escravos e garimpeiros, nas Minas Gerias.
São simplórias e frágeis as ilações para embasar essa estória de que a cachaça nasceu junto com os primeiros banguês da colônia. Não se sustentam diante de breves análises mais sérias.
O fato é que inexistem registros de alambiques no Brasil, durante o primeiro século de sua história. Lembro mesmo da declaração de um jornalista da revista Metropolis, que, ao discorrer sobre o assunto, tenta trazer justificativas à assertiva, de forma plenamente grotesca, segundo ele, “na falta das evidências dos fatos, que se publiquem as versões”.
A cachaça só nasceu no século XVII
Aqui eu trago o texto de Luciano Figueiredo e Renato Pinto Vasconcelos, no livro Águas Ardentes: O Nascimento da Cachaça, onde eles constatam o seguinte:
Ao menos se acreditarmos no silêncio dos documentos, a difusão da aguardente, se ocorreu logo, ficou por algum tempo encoberta por outras tarefas mais imperiosas da produção açucareira, possivelmente restrita ao consumo doméstico.
Descrições de cronistas, missionários, mapas de arrecadação fiscal, relatórios administrativos da situação dos engenhos, e mesmo as leis que trataram de regular o comércio e a tributação sobre o açúcar, no século XVI e ainda nas primeiras décadas do século XVII, não mencionam a existência de aguardente, nome que parece associado à destilação . Esse período de letargia de fermentados do vinho, ora da uva, ora do mel de açúcar ou de abelha, se arrastou até pelo menos a terceira década do século XVII quando surgiram as primeiras notícias da aguardente da cana de açúcar destilada em alambiques.
Apesar da “forçada de barra” de alguns, querendo dar a cachaça à luz já no início do século XVI, o primeiro documento que explicita a produção de algum destilado em território tupiniquim data dos anos 20 do século XVII, na Bahia.
Mário Souto Maior fez um importante estudo sobre a cachaça na História do Brasil. Sua investigação percorreu desde as origens na documentação colonial. A pesquisa encontra os primeiros registros relativos à aguardente. De 21 de junho de 1622 a 21 de maio de 1623, no livro de despesas do “Engenho de Nossa Senhora da Purificação de Ceregype do Conde” (tocado pelos jesuítas, na Bahia) foi relatada: “hua canada [botija] de augoa ardente para os negros da levada por v 480”. Aqui sim, fica claro que a aguardente, um sinônimo de destilado, era fabricada no engenho baiano para o consumo dos escravos do engenho.
Mais uma lenda
Voltarei, com maior profundidade, a tocar nesse assunto, porém, a bem da verdade, é lícito concluir que datar o nascimento da cachaça no alvorecer do século XVI é coisa de desavisados. Infelizmente, trata-se de mais uma dentre as muitas bobagens que gravitam em torno da cachaça.
Só podemos falar, com propriedade, sobre a produção de destilados no Brasil, a partir das primeiras décadas dos Seiscentos. À propalada e enganosa data de nascimento da cachaça, devemos subtrair, pelo menos, uns 100 anos. Além disso, precisamos revisar um sem-número de textos que desinformam e multiplicam mais essa lenda que habita a história do nosso destilado nacional.
A cachaça merece ser levada a sério!
Que linda história! Viva a cultura brasileira!
Obrigado, Luciano.
Parabéns Maurício por sempre trazer conteúdos ricos em conhecimento e de muita importância no campo cultural.
Consuelo, é um grande prazer levar informação e conhecimento sobre a cachaça para as pessoas que se interessam e se importam com a boa história. Informação e conhecimento é o tento levar ás pessoas para que a cachaça seja, sempre, motivo de descoberta e de orgulho.
Excelentes comentários de fundo histórico e cultural. Muito bom recuperar a relação da cachaça com o nosso passado afro-descendente. Qto tempo a cachaça foi renegada e referenciada à tradição marginal dos pobres, negros, vagabundos… acredito até que foi por isso mesmo que meu espírito rebelde me aproximou e me envolveu com essa delícia de bebida. Vou cada vez mais tomá-la, homenagear o santo e apreciá-la de olhos bem abertos e “sem moderação” que o tempo urge! Kkkkkkkkkkkkk
Na verdade o processo de produção de aguardente já é conhecido da humanidade muito antes da época do descobrimento, faziam com tudo, em Portugal usavam bagaço de uva.
Então com chegada da cana para a produção de açúcar o processo deve ter sido até simultâneo e natural.
Diferente do processo do rum que depende da produção de melaço.
Ser humano e álcool sempre andaram juntos kk.
Só escrevendo o que vem na cabeça rs. Agora, depois de falar em cachaça, vou almoçar rs
Verdade Dalteir, a cachaça nasceu quase de forma natural. Tem uma grande históira, mas não tem os 500 anos que tanto falam. Historicamente, nasceu apenas no século XVII.
Eu ia comentar perguntando exatamente isso: se se tem notícia de que os portugueses já tinham destilados antes da conquista? Se sim, seria um fator a mais que “provaria” que podem ter chagado “deste lado” destilando.
Gustavo, a resposta é sim. A aguardente de Portugal já estava presente no Brasil desde o século XVI, mas, a partir do século XVII, a cachaça (aguardente da terra) teve o contraponto da “aguardente do reino”, que era o destilado reinol feito com as cascas da uva. Esse ponto eu pretendo esclarecer e aprofundar em postagens posteriores.
Ahhh mas ia ser legal 500 anos de cachaça. Mas de toda forma é a bebida genuinamente brasileira mas antiga, não é??
a cACHAÇA TEM UMA HISTÓRIA INCRÍVEL, mais empolgante do que qualquer outro destilado do mundo. Genuinamente brasileira e deve ser motivo de orgulho de todos nós.
Excelente, Maurício. Acompanho a qualidade das publicações- conteúdo e design- da Companhia da Cachaça. Abs. Buda Lira.
Obrigado, Buda. Sua audiência me honra.
Grande Mestre Maurício, arretado essa aula de história do Brasil . Estar cada vez mais comorovado que a Cachaça faz parte do DNA dos brasileiro .
Júnior, produtor da cachaça Jardim. Quero te visitar em breve. Obrigado pela deferência.
Cachaça é vida desde que bem apreciada e levada com muita moderação. Parabéns a cachaça e aos seus apreciadores. Show de publicação. Parabéns amigo Mauricio.
Obrigado Wanderlúcio. A cachaça deveria sempre ser motivo de orgulho, por quem a aprecia e por quem não. Afinal, ela está entranhada na formação da nossa história como nação e do nosso povo.
Maurício, mais uma vez, parabéns pelo excelente texto que traz mais um pouco de conhecimento histórico sobre este nosso “patrimônio gastronômico e cultural”.
Obrigado meu amigo Pedro. Levar conhecimento e informação é uma missão á qual eu me propus para tirarmos o véu do preconceito que ainda existe sobre a cachaça. Estou fazendo a minha parte da melhor forma possível.
Grande Mauricio,
A nossa cachaça tem mais de 500 anos, fato!!
bela matéria, um brinde!
Valeu, Carlos. Um grande brinde.
Como amante da História e apreciador da cachaça, ou cana-afetivo, como aprendi com Maurício Carneiro a dizer, conhecer as origens desta bebida tão apaixonante é mesmo uma riqueza! O Brasil se conhece tão pouco e ainda cometemos os mesmíssimos erros que nossos ancestrais nos ensinaram a não repetir.. Que o conhecimento nos salve e a que brindemos com um cachacinha e muito afeto. Porque o mundo está carente de sorrisos e afetos. Abraços a todos os cana-afetivos que aqui estiverem!
Eita caba, até me emocionei. Agradeço enormemente pelas palavras e são essas manifestações que me dão ânimo e me fazem ter a certeza de estar trilhando o caminho certo. Informação e conhecimento, esse é o mote para darmos à cachaça o espaço e reconhecimento que ela merece.
Excelentes comentários de fundo histórico e cultural. Muito bom recuperar a relação da cachaça com o nosso passado afro-descendente. Qto tempo a cachaça foi renegada e referenciada à tradição marginal dos pobres, negros, vagabundos… acredito até que foi por isso mesmo que meu espírito rebelde me aproximou e me envolveu com essa delícia de bebida. Vou cada vez mais tomá-la, homenagear o santo e apreciá-la de olhos bem abertos e “sem moderação” que o tempo urge! Kkkkkkkkkkkkk
Aldenor Prateiro, você é um dos responsáveis pelo aumento da minha paixão pela cachaça. Quando vizinhos, eu morria de amores e inveja de sua adega de cachaças. Homenageemos os santos, as amizades e a vida com uma boa cachaça. Paz e Saúde, meu grande amigo.
Parabéns Maurício,
Texto muito didático e esclarecedor, assim como todos os outros. Continue firme!!!
Obrigado meu amigo baiano, eu sempre me esforço por levar informação e conhecimento da boa cultura cachaceira para as pessoas.