Maurício Carneiro

Uma Grande Mentira: as estórias contadas sobre o nascimento da cachaça

Uma grande mentira toma corpo na internet

A obra do historiador capixaba Eliezer Ortolani conceitua bem a nossa tendência a crer em coisas fantasiosas, segundo ele:

Nosso passado de escravidão, religiosismo e mitificações nos conduz a aceitar como verdadeiros atos e fatos sem um mínimo de base histórica. Nossa cultura, embasada no atavismo do imaginário português, nos impele à propensão ao aceite de coisas fantasiosas, mitos, lendas e estórias descaradamente mentirosas, que turvam, distorcem e escondem a realidade histórica dos fatos.

É exatamente reforçando essas fantasias e mentiras que circula pela internet, num número alarmante de páginas e até de trabalhos mais sérios, como algumas teses de mestrado e doutorado, uma mentirosa “história” sobre a origem da cachaça e das palavras aguardente e pinga. Um texto que agride a inteligência de qualquer pessoa munida de senso crítico e que pare para pensar no assunto durante um ou dois minutos.

Nós, como estudiosos da história da cachaça temos a obrigação de levar conhecimento e informação a todos os que se interessam pela verdade histórica dos fatos.

A mentira

Vejamos o que diz essa tão propagada lenda:

Antigamente, no Brasil, para se ter melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Porém um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou! O que fazer agora? A saída que encontraram foi guardar o melado longe das vistas do feitor. No dia seguinte, encontraram o melado azedo (fermentado). Não pensaram duas vezes e misturaram o tal melado azedo com o novo e levaram os dois ao fogo. Resultado: o “azedo” do melado antigo era álcool, que aos poucos foi evaporando e formou no teto do engenho umas goteiras que pingavam constantemente, era a cachaça já formada que pingava, por isso o nome (PINGA). Quando a pinga batia nas suas costas marcadas com as chibatadas dos feitores ardia muito, por isso deram o nome de ÁGUA ARDENTE. Caindo em seus rostos e escorrendo até a boca, os escravos perceberam que, com a tal goteira, ficavam alegres e com vontade de dançar. E sempre que queriam ficar alegres repetiam o processo. Hoje, como todos sabem, a AGUARDENTE é símbolo nacional!

 

As inconsistências históricas

Esse texto foi disseminado, de forma apócrifa, sem nenhum dado que permita saber de onde vêm as suas fontes de informação e sendo atribuído ao Museu do Homem do Nordeste, sediado em Recife, e isso é mais uma mentira, conforme esclareceu a coordenadora geral do museu, Vânia Brayner:

 “Caros, sinto informar-lhes que esta história nunca foi contada pelo Museu do Homem do Nordeste, em nenhum de seus escritos, exposições ou qualquer documento do Museu. Nós, que fazemos o Museu do Homem do Nordeste, estamos numa verdadeira saga na internet tentando descobrir de onde saiu essa história… do Museu, tenham certeza, não foi”.

Vamos começar nossa análise pelas inconsistências históricas: A aguardente (coisa e palavra) já existia mesmo antes que o primeiro português pusesse o pé por essas bandas  do planeta. A data precisa é incerta, mas, embora a destilação já fosse conhecida pelos árabes desde a Idade Média, pesquisas situam o início da destilação de álcool em torno do século XII. O latim medieval aqua vitae, que teve descendentes em diversos idiomas, pode ter tido uma participação na formação do vocábulo, mas o sentido literal de aguardente está mais próximo do holandês vuurwater, “água de fogo”. O fato é que a ligação entre álcool e água aparece em inúmeras culturas (vodca e uísque também compartilham essa ideia), o que torna difícil dizer como começou.

Os primeiros registros do vocábulo aguardente em português datam do século XV, ou seja, antes do descobrimento. Em espanhol, aguardiente era termo usado desde 1406.  Estima-se que no início do século XIV a produção de bebidas obtidas pela destilação de cereais, uva e sucos fermentados de outras frutas atravessaram fronteiras e começaram a se popularizar em diversos países europeus. Temos como exemplo a Alemanha, que fez a cereja originar o kirsh; a Itália fermentou e destilou o mosto produzido pelo bagaço da uva e criou a grappa; a Rússia fez o centeio virar a vodca; a Escócia transformou cevada maltada no whisky e em Portugal, a sobra da vinificação da uva transformou-se na bagaceira, obtida pela destilação do vinho, do bagaço de uvas, de cereais, ou de outro produto vegetal doce. Nossa cachaça não ganha nem citação nominal, ofuscada pela bagaceira portuguesa, ou seja, a destilação já era totalmente conhecida e dominada por boa parte do mundo da época. A cachaça só foi criada no inicio do século XVI.

Já a pinga, outra palavra cuja etimologia o texto finge iluminar, surgiu muito tempo depois, registrada pela primeira vez em 1813. Vem de “pinga”, ou seja, “cachaça”, aplicada ao sentido de “gota”, “quantidade pequena de líquido”, do Latim PENDICARE, “pingar, estar pendurado”. A princípio tinha a acepção de “gole, trago” – por meio da ideia de algo que apenas se pinga no copo, em pequeno volume – e só depois, por extensão, virou sinônimo de cachaça.

A verdade

Os levantamentos históricos datam o nascimento da cachaça em três lugares distintos, Itamaracá – PE (1516), Porto Seguro – BA (1520) ou São Vicente – SP (1532). O fato é que a cachaça nasceu em algum lugar do litoral brasileiro , infelizmente, sucessivas guerras, invasões, saques  e incêndios deixaram muitos dos documentos históricos resumidos a memórias e registros de historiadores.

Colocados os “pingos nos is”, resta a certeza de que as primeiras produções de cachaça foram planejadas pelos colonizadores, nada foi ao acaso e nem invenção de escravos preguiçosos. Os europeus já dominavam as técnicas de destilação havia muito tempo, produzindo bebidas como a bagaceira. Uma evidência é que o nome mais aceito para cachaça vem do espanhol “cachaza”, um tipo de bagaceira de baixa qualidade produzida pelos ibéricos a partir das cascas e talos da uva. Como não tinham uvas aqui e os navios com a bagaceira demoravam muito entre os carregamentos, os patrícios improvisaram uma bebida com o resíduo da cana e foi daí que nasceu o nosso tão amado destilado nacional.

E PONTO FINAL.

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